sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Nelson

Era um fim de tarde de domingo típico, em que eu voltava pra casa depois de passar o fim de semana a mil (sendo paparicado na casa dos meus pais). Cheguei no portão e fui recebido pelos três cachorros, naquele fervor habitual. E enquanto eu habilmente destrancava o cadeado, com todo cuidado e firmeza pra não deixar a chave cair e eu ficar panguando do lado de fora (já aconteceu), ouvi um quarto latido, mais grave, mais rouco. Que diabo é isso. Abri o portão, fechei o portão, abri a porta de casa e tá lá dentro um cocker gordo e marrom de grandes olheiras (e orelhas, claro) que eu nunca tinha visto na vida.

Sei lá quem é esse cara, mas e aí véi, beleza, passa a mão na cabeça e tal. Minutos depois recebo mensagem de uma amiga (que não vou nomear porque ela ainda vai se tornar vilã até o final do texto) dizendo "já conheceu o Nelson?". Ah, então esse é o Nelson. Nelsão.

Ele foi encontrado amarrado num poste, debaixo de chuva. Alguém viu, socorreu e hospedou num pet shop. Outro alguém soube e resolveu levar para um lugar mais aconchegante, até achar alguém pra adotar. Esse lugar era lá em casa (esse pet shop devia se chamar Gomorra, porque imagina).

Nelsão é uma figura. Ele faz barulho igual o primeiro modelo do PlayStation 3, aquele grandão. Ele tem um bafo desgraçado. Ele peida. Ele fica parado do seu lado te olhando por horas, se deixar. Ele tem uma pirocona que só não me deixava apavorado porque eu sabia que ele não conseguia subir na minha cama. Ele foi adotado por outro casal, e a vida ficou triste, e depois ele voltou pra cá, e a vida ficou feliz de novo. Era meu companheirão, ainda que o fato dele ficar parado te olhando por horas seja mais digno de preocupação que qualquer outra coisa.

Então um dia eu estava resolvendo burocracias em recantos engravatados de São Paulo e, na plataforma do trem, recebo outra mensagem, da mesma pessoa, dizendo "achei os donos do Nelson".

Digressão: a gente notou, pelos hábitos e pela educação, que ele foi bem criado. Digo, ele peidava e tal, mas minha família toda faz isso. Então o evento dele estar amarrado no poste deve ter sido um acidente. Decidiu-se procurar os donos antigos. Voltemos.

"Achei os donos do Nelson". Assim, plau, na fuça. E vou dizer que esse não foi dos dias menos ridículos que eu já vivi: embora eu compreendesse a força desse momento, de como era legal o Nelsão voltar para o seu lar, de como era incrível ter-se encontrado uma agulha nesse palheiro interminável, a frustração me escorria pelos olhos. E assim o fez durante o dia todo, mas por sorte eu consegui camuflar com a rinite (lágrimas e catarro / molham o vidro da janela / mas ninguém me vê).

Os donos do Nelson (que na verdade se chama Boris, hunf) buscá-lo-iam naquela mesma noite. Mas naquela mesma noite eu já estava compromissado com os meus tolos sonhos de sucesso e relevância, de maneira que só fui pra casa pegar minha guitarra, meus pedais e correr pro estúdio. Como humilhação nunca é o bastante, ainda deu tempo de pegar o violão e me despedir do meu amigão com uma canção que eu havia composto em tempos anteriores e se chama "Eu vou deixar vocês pra trás" (que eu copiei de um lado B do Oasis, conta pra ninguém). Não consegui, fui engolido pela emoção.

Que fique bem claro que embora eu costume exagerar e incrementar adereços patéticos às minhas histórias para fins cômicos, dessa vez aconteceu exatamente como descrito, por mais vergonha que eu tenha de admitir.

Então eu fiz o caminho inverso daquele do primeiro dia: passei-lhe a mão na cabeça, atravessei a porta, depois o portão, tranquei com o cadeado. Quando voltei, Nelsão não estava mais lá. Se foi pra sempre o meu amigo.

Como eu sou muito bom com datas (e confesso que já tentei escrever um post sobre isso, mas ele conseguiu o inacreditável feito de ser ainda menos interessante que a média publicada), sei que hoje faz um ano da ida do Nelsão, da volta do Boris. Da última vez que soube, uma ou duas semanas atrás, ele estava mal: estava internado, problemas renais. Não sei qual a situação atual e, na moral, também não quero saber. Deixa eu achar que ele tá peidando e encarando por aí, como sempre. Aceitações racionais não funcionaram pra mim um ano atrás, não vão funcionar agora.

Meu amigo vai viver pra sempre e pronto.

Sei que essa foto não combina com a frase final do texto, mas era essa ou uma que somada ao parágrafo sobre a piroca dele poderia levantar suspeitas que eu não tô com a moral assim tão alta pra combater.

Um comentário:

Zoé disse...

A vida ficou muito mais triste sem meu amigao, companheirão, bafudão, que sinto tanta falta, que chorei tanto ao entregar ao seu dono, como se eu entregasse pedras para os rins :/