terça-feira, 24 de setembro de 2013

Bruce e Clarence



Quando comecei a planejar um texto sobre os dois shows do Bruce Springsteen que vi na semana passada, me vi numa encruzilhada: poderia fazer um relato descritivo e elogioso (muito elogioso) dos shows ou enfiar logo a faca na barriga e rasgar pra ver o que saía de dentro. Escolhi o segundo.

Eu comecei a ouvir a música do Boss pra valer com o Born in the USA e, vou confessar, não saquei de cara qual era todo o apelo. Achei legal e pãns, mas pra justificar estar no Olimpo do rock 'n' roll faltava coisa. E algum tempo depois eu voltei dez anos na história da música e ouvi o Born to Run. Vixe.

De cara, eu não conseguia acreditar que Thunder Road estava acontecendo. Aquilo não podia ser verdade. Tenth Avenue Freeze-Out, Night, Backstreets (meu deus!), Born to Run (meu deus!), She's the One, Meeting Across the River, Jungleland (meu. deus. do. céu) e eu não era mais a mesma pessoa. Depois disso, o Born in the USA (não confunda os nomes) passou a fazer sentido, e aí apareceram dois caras: o próprio Bruce e um tal de Clarence Clemons, lendário saxofonista da E Street Band. O Bruce era o cara que eu queria ser, ou ao menos o cara que ele era naquelas músicas. O Bruce era meu herói. Mas o Big Man era meu amigo.

Você sabe, alguns dias são melhores que outros, e - disso você não sabe - eu sou um autorrecluso, uma ostra escondida na concha de tu madre. Daqui não sai nada, porque eu não tenho forças nem talento nem vontade pra articular as minhas pendengas particulares em abstrações verbais. Sinto muito, não me leve a mal, mas eu sou meu bunker. E naqueles dias que não eram melhores que os outros o Clarence vinha e aquele saxofone me carregava pra uma terra de compreensão e fraternidade. Era como se as ondas sonoras se encaixassem nas minhas ondas cerebrais e foda-se tudo. É meio engraçado (e meio bicha também) porque eu nunca gostei de sax, tirando as precisas intervenções de Bobby Keys com os Stones. Tem músicas que são um soco na barriga, mas tem músicas que são um abraço (e o nível de bichice está atingindo níveis alarmantes).

Mas aí BUM!, Big Man morreu.

Lembro que quando eu soube da notícia imediatamente abri no Youtube uma versão ao vivo de Jungleland e chorei copiosamente durante o solo de saxofone no meio da música (de porta fechada, porque eu só sou um mariquinha extra-oficialmente). Não é que isso fosse mudar muita coisa, porque eu nunca vi o cara, se algum dia visse não falaria com ele, se falasse ele não viraria meu amigo, se virasse eu ia continuar não contando nada e reservando meus mimimis pras gravações de estúdio. Mas a morte tem um peso esquisito.

Mas, ah é, os shows. Ainda que houvesse toda a energia pulsando e sangrando e jorrando sobre todas as pessoas como se o apocalipse estivesse acontecendo do lado de fora e tava todo mundo pouco se fudendo pra isso, eu ainda via a morte ali, como uma sombra. Não digo isso de maneira pejorativa, era como se fosse mesmo o fim, como se Bruce estivesse cantando à beira do abismo (e roubo isso deslavadamente de um ensaio do Greil Marcus lá dos anos 70), como se não sobrasse nada além de estar ali e inventando um novo Messias para um momento de desespero. O amigo se foi, mas o herói ainda estava lá, sobre o palco, sobre as grades, sobre as pessoas, dançando no escuro, de coração faminto (não resisti).

O leitor mais dedicado talvez se lembre que eu comecei um texto sobre o show do Paul McCartney em São Paulo vasculhando as razões que fazem um show ser o melhor da vida. Não se preocupem, nada mudou nesse departamento, o velho Macca ainda fez o melhor show que vi na vida. Mas nos do Bruce eu vi a morte, e sinceramente não sei dizer de qual gosto mais.

Talvez eu precise começar uma segunda lista.

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